domingo, 23 de maio de 2010

E depois de uma tarde de quem sou eu...


"E depois de uma tarde de quem sou eu
E de acordar a uma hora da madrugada em desespero...
Eis que as três horas da madrugada eu me acordei
E me encontrei
Simplesmente isso:
Eu me encontrei calma, alegre
Plenitude sem fulminação
Simplesmente isso
Eu sou eu
E você é você
É lindo, é vasto
Vai durar
Eu sei mais ou menos
O que vou fazer em seguida
Mas por enquanto
Olha pra mim e me ama
Não
Tu olhas pra ti e te amas
É o que está certo."

Clarice Lispector

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Uma Didática da Invenção


I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para Dálias.
É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manoel de Barros


Notas:
1- do "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.
2- http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros