sábado, 28 de junho de 2014

Coração Noturno




Meu coração bate lento
Como se fôsse um pandeiro
Marcando meu sentimento
Retendo meu desespêro
Como notícia do vento
Passando no meu cabelo
Meu coração bate lento
Meu coração bate claro
Como se fosse um martelo
Num rumo sem paralelo
Selando meu desamparo
Numa corrente sem elo
Numa aflição sem reparo
Meu coração bate claro
Meu coração bate quieto
Como se fosse um regato
Vagando pelo deserto
Sangrando no meu retrato
Abrindo meu desacato
Num ferimento coberto
Meu coração bate tão quieto
Meu coração bate negro
Como cantiga sem mote
Como a serpente num bote
Rompendo no meu sossêgo
Lambendo feito chicote
Noturno feito morcêgo
Meu coração bate negro
Lambendo feito chicote
Noturno feito morcêgo
Meu coração bate negro
Lambendo feito chicote
Noturno feito morcêgo
Meu coração bate negro



Nota 1: Faixa do disco "Camaleão", lançado pela gravadora Philips em 1978, "Coração Noturno" foi composta por Edu Lobo e Cacaso, e que contou com Dori Caymmi no violão e Wagner Tiso no piano elétrico https://www.youtube.com/watch?v=tSO6dUBwO2U

domingo, 4 de maio de 2014

A Pantera


De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

(No Jardin des Plantes, Paris)

nota: tradução de Augusto de Campos.
nota: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rainer_Maria_Rilke

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Um Quintana pro meu Pai (+ 1937 * 2010)

Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.

Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"
(Mario Quintana)



Nota 1.
 Inscrição para um portão de Cemitério, Poesia completa (2005),.
Nota 2. Usei esse poema para homenagear meu pai no dia do seu falecimento,
em 30/09/ 2010. 
A imagem é um retrato (óleo sobre tela) do meu pai.

Dia de Saramago: 16 de Novembro.

Química

Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.



Nota1:  José Saramago, in "Os Poemas Possíveis" (1966)
Nota2: Pelo aniversário do escritor em 16 de novembro de 1922.

domingo, 28 de agosto de 2011

A um mestre Alquimista


Nuvens de cores recortam-se em roupas
Desde véus bordados, o odor do incenso
Flores e folhas de lotus desenham-se
sobre a paisagem, delicada capa
Cessa todo o passo ao cantar dos pássaros
Abre-se a gaiola, é liberto o grou
Primavera: deitar-se, o teto é alto
só acordar à chuva, ao final da tarde.

Yu Xuang
Nota: http://pt.wikipedia.org/wiki/Yu_Xuanji

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O amor é uma companhia


O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E vê menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma cousa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.


Se a nao vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas,
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito
                                                 /do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol
                                                 /com a cara dela no meio.


Alberto Caeiro


Nota 1. http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Caeiro
Nota2. Ilustração Lúcia Sousa (http://lusousadesign.blogspot.com)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Tenho Medo de Perder a Maravilha



Tenho medo de perder a maravilha
de teus olhos de estátua e aquele acento
que de noite me imprime em plena face
de teu alento a solitária rosa.

Tenho pena de ser nesta ribeira
tronco sem ramos; e o que mais eu sinto
é não ter a flor, polpa, ou argila
para o gusano do meu sofrimento.

Se és o tesouro meu que oculto tenho
se és minha cruz e minha dor molhada,
se de teu senhorio sou o cão,

não me deixes perder o que ganhei
e as águas decora de teu rio
com as folhas do meu outono esquivo.

Nota 1. Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos' (Tradução de Oscar Mendes)

domingo, 23 de maio de 2010

E depois de uma tarde de quem sou eu...


"E depois de uma tarde de quem sou eu
E de acordar a uma hora da madrugada em desespero...
Eis que as três horas da madrugada eu me acordei
E me encontrei
Simplesmente isso:
Eu me encontrei calma, alegre
Plenitude sem fulminação
Simplesmente isso
Eu sou eu
E você é você
É lindo, é vasto
Vai durar
Eu sei mais ou menos
O que vou fazer em seguida
Mas por enquanto
Olha pra mim e me ama
Não
Tu olhas pra ti e te amas
É o que está certo."

Clarice Lispector

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Uma Didática da Invenção


I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) 0 modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para Dálias.
É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

IX
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manoel de Barros


Notas:
1- do "O Livro das Ignorãnças" ed. Civilização Brasileira.
2- http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, 27 de dezembro de 2009

Segue o Teu Destino


Segue O Teu Destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De arvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nos somos sempre
Iguais a nos-proprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Ve de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está alem dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(Ricardo Reis)

Notas:
(2) Este poema de Ricardo Reis foi musicado por Suely Costa. A bela canção resultante dessa parceria foi interpretada por Nana Caymi no disco tributo da Som Livre chamado "Música em Pessoa" (1985), cujo lançamento foi parte das homenagens pelos 50 anos da morte de Fernando Pessoa. Suely Costa suprimiu o terceiro verso e parte do quarto verso da quarta estrofe quando musicou este poema:

Ve de longe a vida.
Nunca a interrogues.
A resposta Está alem dos deuses.

(3) Recentemente a versão musicada de Segue o seu Destino foi regravada por Renato Braz no seu terceiro album solo "Outros Quilombos" (2002).
(4) Gostaria que esse poema fosse recitado ou, melhor ainda, cantado, no meu velório antes da minha cremação.